domingo, junho 24, 2007

O Homem que Sabia Fingir.

"Ora, o que é a vida? É uma espécie de comédia contínua em que os homens, disfarçados de mil maneiras diferentes, aparecem em cena, desempenham seus papéis, até que o diretor, depois de tê-los feito mudar de disfarce e aparecer ora sob a púrpura soberba dos reis, ora sob os andrajos repulsivos da escravidão e da miséria, força-os finalmente a sair do palco."

Erasmo de Rotterdam



Ele não era especial. Acordava, trabalhava, comia, dormia; tudo dentro dos limites da normalidade e rotina. Até mesmo seu nome era comum: Sebastião.

Sebastião não percebeu quando ou onde, mas sua tolerância e calma com o vulgar se esgotaram.

Olhou para os lados e viu que não tinha sua própria casa, olhou para fora e lembrou que não tinha carro, passou a mão pela estante e sentiu não ter livros; olhou para si mesmo e chorou por não ter mais a juventude e algo que pudesse valer mais que um salário mínimo.

“Sebastião...”, pensava ele, “você não vale mais que um mísero salário mínimo”.

Naquela tarde pensou em se matar, mil modos e maneiras de fugir do terror em que acordara. Porém como pode haver morte onde nunca houve vida?

Sebastião resolveu viver.

Acordou triste no dia seguinte, porém enganou a si mesmo: levantou cantando músicas populares, dançando, distribuindo “bom-dia” para todos os seres vivos e não vivos.

Não se sentia bem em momento algum, mas resolveu fingir. Sem conselhos de sábios mestres, sem ter estudado teorias filosóficas de críticos católicos, sem nenhuma instrução, fingia por conta própria, o puro e verdadeiro fingimento de Sebastião.

Meses se passaram. Sebastião havia resolvido simular ser superior ao seu próprio chefe de departamento, onde trabalhava, para sentir-se melhor. Agia como um sujeito mais esperto e sagaz que seu vigia, adotava posturas novas, palavras diferentes, expressões faciais e corporais distintas do velho Sebastião.

Imitou o chefe do departamento, depois atuou no escritório, contracenou com o subgerente, passou texto com o gerente, e depois de aproximadamente um ano e meio lá estava Sebastião representando com o dono da empresa.

Outras atuações ocorreram nesse tempo de um ano e meio.

Sentia-se sozinho toda a noite, sem ninguém para conversar, sem alguém para rir ou chorar. Aventurou-se no modo mais puro da representação: o amor!

Patrícia era jovem, bonita, inteligente, simpática e elegante. Sebastião era muito mais que isso. Atuou bem e recebeu como prêmio, seu Oscar de melhor ator, o coração da moça, devota e totalmente sincera em seus sentimentos.

Sebastião não disse à Patrícia ser mais jovem, mais rico, ou mais inteligente, ele a convencia, a forçava a vê-lo ao seu modo.

O lado triste e verdadeiro de Sebastião, que sempre o lembrava que tudo não passava de mera interpretação, foi se calando aos poucos, até que tornou-se um ponto pequeno no espírito jovem e contagiante. Mas ele voltaria, Sebastião sabia disso, mas fingiu esquecer.

Os dias foram passando assim. Meses, anos, décadas...

Sebastião agora tinha casa, carro, mulher, dois filhos, livros de encher os olhos e a alma, salário milionário e uma saúde incrível para sua idade.

Acordado na madrugada enquanto fingia estar lendo entusiasmadamente, Sebastião começou a pensar nas outras pessoas que são como ele era; pensou nas que são piores do que era; pensou na fome, no frio, na morada na rua. Pensou muita coisa.

Começou a sentir nojo de si mesmo, enquanto divertia-se mascarando a realidade com suas hipocrisias sem tamanho. Achou necessário mudar sem causar danos aos amigos e parentes cativados pelo fingimento, continuava a ser o homem feliz para eles.

Sebastião empenhava-se todo o dia para ajudar os necessitados e carentes. Doações grandiosas, eventos, confecções de roupas e até mesmo um projeto ousado de moradia. O mais notório homem da cidade, e o mais doente.

O câncer não se desenvolveu calma e silenciosamente, causou danos e gritaria, mas Sebastião não lhe deu ouvidos.

Até sua morte ninguém jamais soube de algo que levantasse a menor suspeita de sua doença, antiga vida ou do sofrimento solitário. Sebastião foi impecável desde o começo até o fim de sua peça magnífica.

Sua morte foi em um dia chuvoso, carregado, triste, pesado.

Não houve expediente na cidade, não houve riso algum, todos sentiram a grande perda.

Patrícia chorava pelo marido mais perfeito que já existiu, os filhos pelo melhor amigo e educador, os amigos pelo melhor sujeito, a igreja pelo cristão mais puro, o sócio pelo melhor empreendedor do estado, os pobres pelo mais bondoso, os ladrões pelo mais respeitado, os parentes pelo homem que mudou de vida pelo esforço.

A natureza chorou o único homem que soube viver.
E choveu durante toda a semana.

Hoje em dia os boatos sobre Sebastião ultrapassam a casa das centenas. Ainda ocorrem os conflitos para torná-lo um santo. Livros foram escritos, poemas e músicas cantadas.

Os escritos sobre ele dizem que Sebastião sabia exatamente o dia em que iria falecer – sem apresentarem maiores explicações.

Patrícia nunca casou-se novamente. Deu continuidade ao trabalho do marido e morreu poucos anos depois.

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