domingo, fevereiro 04, 2007

10 centavos.

Poderia descrever o que senti criando um personagem qualquer e cobrindo a situação com milhares de metáforas, coisas que pensei mas que não desejo demonstrar, dizer por mim através de outros. Afinal , acho que isso é o que mais me fascina na literatura. E isso que faço na maioria das vezes ...

4 da tarde, depois de perder metade de meu dia trabalhando em algo aparentemente inútil , corri para o bar da esquina e comprei 4 engradados de cerveja.
Já estava tudo combinado, iríamos na casa do Rodrigão beber até a noite chegar. Já aquecidos e prontos para aproveitar as nossas vidas, passaríamos em alguma boate ou barzinho da moda para ficar com algumas gostosas.
Tudo estava correndo conforme os planos. Uma semana, fazia uma semana que estava pensando naquele sábado," passei segunda, terça, quarta, quinta e sexta me preparando pra hoje, vai ser animal".

O calor estava de matar, não conseguia ficar dentro do carro, mesmo com a ar condicionado ligado. Mudei para a temperatura mínima e segui o caminho.
Só pensava na cerveja gelada e na mulherada. Pensei na menina que conheci alguns dias atrás, poderia até chama-lá, mas iria cortar meu barato com as outras, "só quero me divertir, vou deixar esse lance de relacionamento sério para os outros manés".
Estava suando mesmo com a porcaria do ar ligado, devia estar uns 50 graus lá fora. "Preciso mudar essa merda de ar, vou pegar meu pagamento de hoje e investir nisso, segunda mesmo". O fato de eu morar com meus pais e ter tudo pago por eles me poupava de muitos aborrecimentos, podia fazer o que quisesse com meu salário.

Havia chego na avenida perto da casa do Rodrigão, uma subida de 900 metros, tão íngreme que até sentia estar em uma reta de 90 graus. O carro sempre subia com dificultade aquela parada.
Passei pela região dos bares, uns tipos bebendo cerveja e rindo alto, umas gostosas usando a avenida como passarela, carros com o porta malas levantado com um som doido tocando alto pacas, "temos que lembrar de passar por aqui mais tarde". As mulheres dali valiam o sacrifício de aguentar o calor infernal daquela tarde.
Encostei o carro por alguns segundos pensando em comprar mais cerveja em um daqueles bares. Sai e olhei do outro lado da avenida buscando alguma gata. Vi um velho.

Empurrando um carrinho sujo de sorvetes, com muita dificuldade, o velho prosseguia com olhar triste, suando como eu nunca tinha visto alguém suar antes. Poderia ter virado o rosto novamente e ter esquecido do velho como muitas vezes faço com mendigos ou mesmo com problemas que não posso resolver, mas não. Fiquei olhando.
Ele subia, já sem lágrimas para chorar, e as prosmícuas desciam, rebolando e encarando os homens dos bares. O velho olhava triste para o chão, sem forças para anunciar o que precisava vender para sobreviver, e os bêbados gritavam e riam como macacos , somente pelo prazer de serem idiotas. O prazer de ser idiota, preocupado com coisas inúteis e ridículas, cultivando uma vida vazia.
Foi quando o velho tropeçou de fraqueza, e o carrinho voltou batendo em sua cara, que me vi naqueles bêbados e nas prostitutas, que olhei para mim mesmo, como em um espelho.

Ouvia risos e gritos vindos dos bares, ninguém havia visto o velho.
Olhando para o senhor tentando se levantar para continuar, atravessei a rua e fui ao seu encontro. Olhei de perto seu rosto e corpo queimados pelo sol, sua expressão, suas roupas rasgadas e o peso de seu carrinho de sorvetes. O ajudei a levantar e olhei para o outro lado, todo mundo rindo e bebendo, se beijando e lambendo, cuspindo, falando, fumando, acabando com seus neurônios, acabando com suas vidas. Olhei para o velho, seu rosto triste e seu carrinho.
"Tome senhor, pegue esse dinheiro , não é muito, mas durará por alguns dias... volte para casa."

Eu voltei para casa e passei o dia inteiro, e mais alguns dias depois, pensando no que aconteceu com o velho.
Talvez meu trabalho não seja tão ruim , talvez meu esforço não seja tão inútil e talvez desistir das coisas não é o correto. Não sigo a sério nenhuma religião ou seita, mas depois daquele dia eu comecei a desejar que a história de um lugar tranquilo para as pessoas boas viverem para sempre fosse real. Um lugar para as pessoas boas, como o senhor do sorvete, encontrarem o descanso que não conseguiram nessa vida.

... e hoje, não foi diferente.

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