Pensamento Positivo .

Armandinho estava ansioso, o dia seguinte representava muito para ele. Um ano de preparo e testes para chegar no dia seguinte, no dia do resultado , no momento que saberia se todo o esforço de um ano inteiro valeu a pena, se compensou ... ou não.

Tinha quase 20 anos, passou 3 deles se preocupando com seu sonho, com a prova que o distanciava de sua maior vocação , de seu sonho de ser lixeiro.
Nasceu bem pobre, porém com bons exemplos dentro de sua família. Sua mãe era lixeira, uma das melhores da cidade, enfrentava as regiões da classe média e alta, onde montanhas de lixo se acumulam diariamente, era uma funcionária notável, não somente por ser uma das únicas 3 lixeiras da cidade , um trabalho tendenciosamente masculino, mas também pelo seu esforço, bom preparo físico e dedicação.
Seu pai, Armandão, não conseguiu chegar ao sonho que a maioria almeja, mas se deu bem na carreira que escolheu. Quando jovem possuía os mesmos anseios que Armandinho, porém foi vítima do destino e jogou parte de seu desejo para trás para se dedicar ao jovem Armando que acabara de nascer. Era um dos melhores, se não o melhor, catador de papel que a cidade já viu. Somente ele conseguia acumular mais de 50 quilos de papel em um dia árduo de trabalho. Uma pessoa acima da média humana, porém pouco reconhecida.
Armandinho sabia que o destino de seus entes seria diferente se seu nascimento fosse evitado, sentia isso, pensava como estariam Armandão e sua esposa sem sua presença, talvez ambos lixeiros em Paris ou Manhattan, desfrutando de uma boa vida e curtindo o trabalho. Mas ele nasceu, e carregava nos ombros a obrigação de sempre dar o melhor, para ser o melhor e fazer com que seus pais tivessem orgulho dele ...
Armandinho tinha um sonho, e não parava de pensar nele enquanto deitado na cama olhando para o teto escuro. Se revirava de um lado para o outro e lembrava de como se preparou para o teste e como o fez como o mais dedicado dos concorrentes. Correu bem... nossa, como correu o Armandinho! ... mas o resultado estava em sigilo até o dia de amanhã, amanhã a tarde.
Saiu de sua cama de papelão e foi a geladeira barulhenta e velha buscar um copo d'água. Enquanto passava pelo corredor em que seu pai durmia coberto com jornal lembrou do apoio que estava recebendo , não só de seus pais, mas de todos seus amigos e de todas as novas pessoas que conheceu ao decorrer desse ano. Talvez essa fosse a maior diferença desta vez, o pensamento positivo de tantas pessoas para um único bem comum, o bem de Armandinho.
Tomou o último gole em sua caneca suja, sentou, pensou... todos os outros anos, nos outros teste, Armandinho recebera sim apoio de seus colegas e familiares, mas se restringia a isso, a apenas os melhores amigos e seus pais , nunca foi tão grande o círculo de pessoas que Armandinho conviveu.
Sentiu o sono novamente e deitou-se. Sonhou com seus teste anteriores. O primeiro, quando o imaturo e arrogante Armandinho pensou ser capaz de ultrapassar o obstáculo sem maiores dificuldades, quando mesmo com um resultado bom fracassou, quando percebeu que correr somente não era o suficiente. Sonhou com o segundo teste, com a sensação de estar preparado, onde , mesmo sem muita confiança , sabia que estava melhor apto para realizar o teste, a sensação de tropeçar no começo da corrida, sonhou com a vista que teve ao olhar seus concorrentes metros a frente enquanto estava caído no chão, sentiu a frustação novamente, e a derrota . Sonhou com a decisão de não desistir... sonhou com cada parte da preparação, dos exercícios forçados para a perna, da dificuldade que sentiu para aprender a ler para o teste teórico, do esforço para conhecer um mundo novo para ele.

Amanheceu feliz. Não sabia bem do que se tratava, mas sentia algo bom. Algo que o fazia sorrir. E sorrindo foi ao trabalho, lembrando das pessoas que conheceu no curso preparatório, de seus colegas dizendo "é isso ai Armando! agora é sua vez!", "vai Armandão, detona , cara!" , "você tem uma capacidade incrível! muito me surpreende você não estar no top dos lixeiros, Armandinho..." , seu espírito se inflava quando lembrava das palavras de apoio.
Chegou ao trabalho e cumprimentou seus colegas de labor, os mesmos que o ensinaram a arte de vender, onde Armandinho se acomodou tão bem e se destacou como sendo o melhor negociante da loja de pneus. Todos chegavam dizendo "é hoje rapaz!", "preparado Armandinho? já trouxe o champagne, truta!" , "vamos ter ovada no Armando hoje!" ... com tanta energia boa junta Armandinho chegava a estremecer, já se idealizando correndo pela cidade com 3 sacos de lixo nas mãos, sorrindo de felicidade.

-Bem ... não sei pessoal, não fui muito excepcional nas provas ... não se animem tanto! - disse Armandinho tímido.
-Ah ! Qualé Armando ... deixa disso cara, sabemos que você passou, temos certeza! - respondeu Luiz Mário, um dos vendedores - até mesmo nossos melhores clientes já ligaram aqui te desejando sorte! Falando nisso .. minha mãe fez essa camisa escrita "Armadinho lixeiro" pra você rapá, veste ai! ...
-Veste! Veste! Veste! - gritavam todos ao redor de Armandinho.
-Pô gente .. não sei não .. vamos esperar o resultado .. - aconselha Armandinho.
-ARMANDO! - grita seu Gê, o chefe de Armandinho, enquanto chegava da rua. - hoje é um dia especial, meu rapaz! Uma realização sua é uma festividade nossa, festejaremos na parte da tarde, depois de sua chegada... está dispensado! Só volte depois de confirmar o resultado!
-Armando! Armando... Armando... Aramando... - gritavam todos enquanto Armandinho pegava suas coisas para ir embora .
-Armandinho lixeiro!
-Hahahaha ...

Estava chegando a hora. Com todo esse pensamento positivo Armandinho já se sentia o dono da vaga, e saltitava de alegria, pois tinha certeza de ter passado. Se dirigiu ao um boteco que possuia um computador velho com internet perto de sua casa, o resultado sairia na web, e como Armandinho não tinha condições de comprar um computador pediu ao dono do estabelecimento para usá-lo . "Claro! Claro!" disse o "portuga Joaquim", "não está vendo a praca ali? o reservado escrito na práquinha? é pro cê rapaiz ... o Tião e o Bila também vieram aqui para ver sua alegria" , "dae Armando, mete ficha!" disse Bila, o agiota da região.
Esperando a hora passar sentado na frente do boteco Armandinho encontrou muitos conhecidos, que se juntaram a ele para aguardar o horário do resultado. Encontrou a garota que era apaixonado, seus amigos de infância e amigos da família ... todos lá apoiando Armandinho.

15:00 h . Hora do resultado. Armando se dirigiu com dificuldade até o computador, o tumulto em volta dele era grande. Sentia os cafunés e tapinhas na costas, mas com tanta gente era difícil identificar de quem vinha. Internet discada. Barulho de conexão lerda...

-Podí dexa! - disse portuga Joaquim. - eu abro o site pro nosso campeão ver!

Armandinho estava tão confiante que tremia de ansiedade. Suas mãos suavam e seu rosto estava dolorido por conta do sorriso. Olhava fixamente para a tela suja do pc do portuga. Seu coração batia forte, seu nariz quase sangrava. Sentiu sua pressão aumentar , seus olhos arderem.
Ouvia as pessoas ao seu lado gritando seu nome, 37 indivíduos dando força para o homem que mais merecia e parecia ser um lixeiro da cidade. O mair corredor que o estado já teve.

-Armando! Armando! Armando! ...
-Armandinho lixeiro ...
-Armando! Armando! ..
-Viado!
-Armando! Armando! Armando! Armando! ...

Armandinho ouvia tudo aquilo . Começou a sentir mal. Seus olhos lacrimejavam de dor. Olhava para os lados e só sentia a energia das pessoas, a loucura, a felicidade, pensamentos simultâneos. Abriu a boca para dizer "parem!" , não conseguiu, sua boca rachada no lado sangrou, sua gengiva cortou-se sozinha, como se explodindo aos poucos. Jogou sua cabeça para trás buscando ar para respirar. Gritos! Estouro de champagne! Mais gritos. Portuga Joaquim avisando sobre a janela que ia abrir no computador. Os gritos de emoção.
"Vai armando!", "ele vai passar!", "o cara corre feito o demônio..", "melhor lixeiro da cidade!", "o jovem é bom", "Armando!", "minha carteira!", "estou super feliz por ele!" , Armando ouvia tudo ao mesmo tempo, como se entrasse na cabeça de cada um ali presente, como se juntasse os pensamentos de todos que estavam torcendo por ele ao redor da cidade naquele momento, como se fosse um telepata. Dor. Sangramento. Sentiu o braço quebrar. Cãibra na perna. Cãibra no rosto.

-Armando! Armando! Armando!
-Ahh ..
-Vai lá rapaz .. você é o melhor .. fodão! ... corre feito o demônio ..
-Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!!
-Armando! Armando! Armando!
-Arrrrrrrrrrrrrrgh ... Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
-A tela abriu!
-ABRIU!

-CABUMMM!!!!!

Armando explodiu. Na tela carregada da página da internet só havia agora o sangue de um jovem sonhador, o vermelho quente, encarando os presentes com seu brilho macabro. O silêncio tomou conta do recinto feliz de alguns segundos atrás.

...

Armandinho não passou no fim das contas, foi bem, mas reprovou novamente no exame. Porém onde quer que ele esteja, seu agradecimento aos que torciam por ele será eterno, se lembrará de cada palavra de apoio que recebeu nessa sua breve vida.
E o sorriso estático na cara de Armandinho não era resultado de sua confiança ou esperança, mas sim da felicidade que sentia sendo amado por todas aquelas pessoas. Mesmo se chegasse a olhar o resultado não ficaria triste, pois saberia que tinha o mais importante para recomeçar sua caminhada rumo ao seu objetivo, o apoio das pessoas amadas.


* Em homenagem a Armandinho, que hoje limpa as ruas do céu com sua corrida fantástica e seu jeito alegre de viver ...